domingo, 28 de outubro de 2012

Curtição

Tô perdida.
Um segundo que eu larguei o computador
para atender o telefone
e a Bella pirulitou pra cadeira,
mãozinha a deslizar pelo mouse,
olhos parados na página do facebook.
Enquanto eu conversava com uma amiga
que não via há muito tempo,
a danadinha clicou numa propaganda
de brinquedos infantis no lado direito da página.
Curtiu, curtiu, curtiu. Não tenho dúvida que curtiu.
Quando eu voltei, ela já tinha colocado no carrinho
um armário da Barbie no valor de R$ 1.499,00.
(...)

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Sexo frágil

Você não deve estar entendendo nada.
O que este título está fazendo aqui, depois do lindo tributo às mulheres prestado no post anterior?
Que história é essa de sexo frágil, Renata?!
(...)
É a história - várias histórias - que tenho visto
e ouvido sobre algumas mulheres.
A cada história uma personagem, uma fantasia,
um quê de forte fragilidade.
Essas mulheres há muito largaram o tanque e o fogão, queimaram o sutiã em praça pública,
se desvirginaram do tabu de casar virgem.
Não se trata aqui de direitos iguais, salários menores, revoluções feministas ou outros pormenores.
Trata-se de pensar na forma como essas mulheres andam lidando com os seus afetos, suas buscas, idiossincrasias mais nuas.
Agora elas não queimam mais sutiã em praça pública.
Segundo testemunhas "cardio-oculares",
elas queimam o filme, esturricam
o pouco de amor próprio que lhes resta,
desfazem-se em mil pedaços.
Esvaziadas de autoestima, movidas pelo desespero e achando que podem tudo, essas mulheres escancaram
sua fragilidade velada. Seu sexo frágil.
Tenho visto alguns homens incomodados
com essas mulheres. Tenho visto algumas mulheres
com vergonha dessas mulheres.
Andam dizendo que elas se jogam, se desmerecem,
se deitam na bandeja pro garçom levar.
Não sabem, não conhecem,
não colocam-se no seu lugar.
"Será que não sabem?", entoam os advogados do diabo.
Segundo as más línguas, essas mulheres usam disfarce de coitadinha, impregnadas da própria carência,
saltos transformados em rasteirinha. Rasa inocência.
Línguas mais ferinas dizem que elas se fantasiam
de lobinhas bobinhas em pele de cordeiro,
maquiagem borrada, assustadoramente
enganando a si mesmas.
Línguas amigas interrogam a quantas anda
sua autoestima, sua inteireza, seu espelho.
Retomando Simone de Beauvoir,
"não se nasce mulher, torna-se mulher".
E quando me perguntam no que estas mulheres
estão se tornando, ofereço um refresco de maracujá,
rede na varanda e convite pra filosofar.
Cessar fogo. Trégua de pedras.
Olhos se abrindo em colo pra compreensão chegar, gentilmente se aninhar.
Rompendo com todos os rótulos e estereótipos,
resta o grito doído da mulher que pede arrego,
rumo, paradeiro, colete salva-vidas, prumo.
O que lhe falta?
Bússola, luz, caminho, porto seguro.
Muitas vezes não é a mulher que grita.
É a criança que chora. Sapateia. Faz pirraça.
Joga as tranças do alto da torre,
se agarrando num fio desesperado de esperança,
ensandecida para chegar em algum lugar.
Que lugar, Rapunzel?
Perdida nos seus descaminhos, absorta
em sua greve de sono, precisa fechar os olhos,
apagar a luz, programar o despertador
para enfim acordar mulher.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Mulheres

"Não se nasce mulher, torna-se mulher."
É de Simone de Beauvoir a célebre frase que tantas mulheres - feministas ou não, famosas ou não, carregam na alma e no olhar.
Dê a estas mulheres um espelho e ali estará toda a sua poesia em movimento - olhos, cílios, boca, seios, jogo de pernas, salto alto, cintura. (Muito jogo de cintura.)
Dê a estas mulheres um divã e ali estará sua vida inteira em paralisia ou movimento - suas escolhas, seus medos, vontades, desejos, delírios, alucinações mais cheias de lucidez.
Sua menina já foi dormir faz tempo. Virou Bela Adormecida esquecida num castelo no meio da floresta. Esquecida pelo príncipe, que lembrou que ele mesmo não existe. Carregada no colo pela mulher, embalada pelas lembranças do que um dia foi. Foi, já não é.
Dê a estas mulheres um homem de verdade e ali estará sua alma, sua carne, seu corpo, sua mente.
Mente quem diz que já se nasce mulher. Nasce a menininha linda, dengo da tia, xodó da vovó. Torna-se mulher com o tornar dos dias, noites, anos a fio. Nasce a primeira espinha, o primeiro amor, a primeira dor. Torna-se mulher quem se apropria de si, com todos os arranhões que a vida traz. Torna-se mulher quem diz tudo com o olhar, sem códigos ou legendas. Quem vai pra cama sem dormir com os anjos. Quem toma à frente sem fazer revolução. Quem atravessa o deserto sem pedir colo. Quem faz dos rascunhos poesia. Quem faz de um perfume sua autoria.
Torna-se mulher quem sabe amar por inteiro
sem nunca ter feito um curso de amor no exterior.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Motivo nenhum

Não era seu aniversário. Nenhuma data especial, nenhum evento extraordinário no calendário.
Nada importante a comemorar, a não ser a própria vida.
SUA vida, inteira e simplesmente.
Passou numa floricultura, saiu perfumando a rua.
Passou no salão, marcou um spa de pé.
Passou a mão na bolsa, foi namorar vitrine.
Lingerie, boulangerie, sortie.
Saiu de fininho, à francesa,
de um relacionamento há algum tempo engessado.
Entrou na delicatessen e sorveu o perfume dos vinhos. Delicadamente.
Degustou queijos, cerejas, licores.
Pôs no carrinho. Pôs-se a caminho.
Ligou o carro, seguiu em frente
com "As quatro estações" de Vivaldi.
Tocou o celular, não ouviu. Nona chamada não atendida
do moço que deixara a relação de pé quebrado,
com vários ligamentos rompidos. Doídos.
Levada pelo som vibrante dos violinos, seguiu em frente,
sentindo-se pela primeira vez regente da sua vida.
Chegou em casa exausta de alegria.
Tomou um banho de espuma, espalhou velas pela sala.
Risotinho esperando na panela,
vinho resfriando na adega.
Profusão de aromas, cheiros, temperos.
Combinações as mais variadas: cereja com queijo,
funghi com páprica, chocolate com pimenta.
No banheiro ainda tomado pelo vapor,
o celular registrava a décima quinta ligação perdida.
Toque de campainha. Vizinho do sexto andar,
como quem não queria nada, querendo tudo,
xícara vazia na mão pedindo
um cadinho de arroz arbóreo.
Trocou a xícara por uma taça de vinho.
Casa inteira perfumada de risoto a quatro mãos.