domingo, 22 de setembro de 2013

Prosa hilária


Tem coisas que não têm a menor graça. Outras acabam tendo, mesmo sem ter que ter.
Certo é que o riso é terapêutico, disso não há a menor dúvida. Desopila o fígado, faz bem pra pele, pra alma, pra tudo. Se bobear até emagrece, haja vista os abdominais que a gente faz quando se contorce de tanto rir.
Já disse no post anterior que minha mãe, além de extremamente aberta para falar dos assuntos mais difíceis, é prática e objetiva, e gosta das coisas bem organizadas. Tudo no lugar certo, a tempo e a hora.
Só não imaginava que ela fosse chegar a tanto. Quase morri de rir.
Depois que ela ticou o ítem "cemitério" da sua listinha (se você não leu o post anterior, dá um pulinho lá), foi organizar a papelada numa pasta e se deparou com o tal ímã de geladeira para quando fosse a hora. Olhou o relógio: quinze pra meia noite de uma segunda-feira.
Sem pestanejar, ligou para o número indicado.
Do outro lado da linha, a voz sonolenta de um homem atendeu prontamente:
- Serviço Funerário Israelita boa noite Miguel, plantão 24 horas por dia.
- Desculpa, foi engano. (!)
E assim, certa de que o serviço funciona mesmo, foi dormir tranquila. Tudo certo e conferido.
Nem preciso dizer o quanto este episódio rendeu no dia seguinte.
Minha irmã, morrendo de rir, soltou o seguinte comentário:
- Coitado do coveiro, gente. Deve ter voltado a dormir aliviado quando viu que não ia ter que trabalhar de madrugada.
Mas o hilário mesmo ainda estava por vir.
Quatro dias depois, já passava de meia-noite e meu marido resolveu pregar uma peça na sogra.
Ligou para ela e fez uma voz completamente diferente, falando rápido e rasteiro, num português bem afetado:
- Boa noite, Dona Clara, aqui é do Serviço Funerário Israelita. Antes de mais nada gostaríamos de te dar as boas-vindas, a senhora é a nossa mais nova inquilina.
- Inquilina não! Proprietária!
- Temos aqui registrada uma ligação da senhora, podemos ajudar?
- Eu? Não liguei não, o senhor está enganado.
- Não estou não, engano foi o que a senhora disse quando ligou, mas que a senhora ligou, ligou.
- Qual o seu nome?
- É Miguel. A seu dispor.
- Miguel, você está falando muito rápido! Você podia falar um pouco mais devagar?
- Posso não, Dona Clara. A vida é curta, por isso eu falo rápido! A vida é curta, curta, curta. E aqui o nosso lema é: ligou, enterrou.
- Mas... como é que você sabe que fui eu? Como é que conseguiu meu telefone?
- A senhora esqueceu que nós temos convênio com o Serviço de Inteligência Israelense?
- Não fui eu, nego até a morte.
- Foi sim, nós confirmamos estes dados com a sua filha Renata.
- A minha filha?! Eu vou ligar pra ela agora!!!
- Precisa não, ela está aqui do meu lado. Vou passar pra ela. (!)
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59 abdominais, fígado em dia, pele nos trinques. Isso é que é literalmente rir pra não chorar.

domingo, 8 de setembro de 2013

Prosa ruim


Coisa esquisita essa história de morrer. Como se não bastasse o susto, o luto, o vazio, a indescritível dor da perda, ainda há os estranhos e doídos pormenores. (Ou seriam “pormaiores”?)
De uns tempos pra cá, resolvi olhar para todos eles de frente.
Haja coragem. Haja desembaraço para tocar em um assunto tão intocável. Prosa ruim, não havia título mais apropriado.
Todo mundo vai morrer um dia, eu sei, mas é como se o tema não nos pertencesse. Planejamos viagens, casa na praia, festas de aniversário, buquê de casamento. Reforma do apartamento, mudança de profissão, carro novo na garagem. Sim, sabemos viver. Nossa listinha mental inclui vasos de flor, vinhos na adega, orquestras sinfônicas, enxoval do bebê. Ligamos a TV e o break comercial nos move (ou paralisa) com perfumes, bonecas, chinelos, panelas, colchões, lugares para se descansar em paz. E antes que a sua paz vá embora com bucólicas imagens de gramados verdejantes e slogans idílicos, você muda rapidamente de canal. Da morte à vida em um segundo. Muito mais fácil tomar uma cerveja gelada, suspirar por aquele vestido vermelho, ir com a família pra Disney.
Pois ultimamente ando exercitando essa coisa difícil que é pensar na morte. (No lado prático da morte.) Vão-se os pais dos amigos, os velórios nos atravessam a rotina com seus rituais, fica a constatação dura de que um dia é você que vai passar por isso.
Penso no meu pai e na minha mãe, embasamento mais lindo da minha existência, e sofro por antecipação. Se eu pudesse, eles viveriam duzentos anos. Não posso. Choro.
Assisto à propaganda bucólica e me vejo alvo de seu apelo. Pelo amor de Deus, quando eles se forem quero apenas chorar. Muito. Chorar, rezar, pedir, lembrar, homenagear, fazer-me encanto no meu sagrado canto de despedida. Não quero saber de providenciar nada: flores, jazigo, velório. Não terei cabeça, nem quero ter. Apenas coração pulsando, cabendo tudo o que é dor, memória, saudade, colo, uma existência inteira que se foi apesar de nunca ir.
E foi dessa dolorosa antecipação que chamei meus pais para uma conversa. “Prosa ruim”, fui logo avisando. “Prosa necessária, saudável, minha filha. Faz parte da vida pensar na morte”, respondeu com serenidade minha mãe.
E foi assim que tomamos coragem para ligar para os cemitérios, fazer tomada de preços, esclarecer dúvidas sobre o concreto e inevitável morrer. De uma maneira muito racional, recusamos a violência que é ser pego de surpresa numa hora dessas.
Tenho um cunhado que mal recebeu a notícia de que o coração da mãe parou de bater, foi “gentilmente acolhido” por um agente funerário ainda no corredor do hospital, cobrando preços exorbitantes pela despedida. É dessa triste cena permeada de “marketing emocional” que não quero jamais ser protagonista.
Tenho um amigo, por outro lado, que sempre que vai almoçar na casa dos pais é levado até um canto da sala: “Meu filho, se acontecer alguma coisa tá tudo aqui, nessa gaveta: papelada em dia, comprovantes, o telefone para tomar as providências. Tudo certo.”
Quando inaugurei a “prosa ruim” meu pai não rendeu muito a conversa. “O que você resolver está bom, minha filha. Pode ir olhando e me repasse as informações.” Minha mãe, prática feito ela só, foi logo dando força pro assunto: “Que bom podermos conversar sobre isso, florzinha. Muito saudável a gente cuidar da morte enquanto vive. E, enquanto vive, fazer isso da melhor maneira possível, desfrutando dos momentos de felicidade, aproveitando tudo o que a vida tem a nos oferecer.”
E lá foi ela resolver o assunto, querendo a área do cemitério mais bonita, bem perto das suas raízes. Na sua caderneta de anotações, uma página bem pitoresca vinha com a listinha:
• Presente casamento Luiz.
• Roteiro Portugal.
• Meia anti-derrapante.
• Cemitério.
Outro dia me deu a notícia toda feliz, bem-resolvida: “Filha, comprei meu lote na Pampulha! Quando chegar a hora, o telefone vai estar aqui ó, nesse ímã de geladeira.“
E o que era “prosa ruim” virou crise de riso, abraço gostoso, listinha quitada no nosso jeito bem-humorado de resolver as coisas práticas, imensamente delicadas, sem fazer disso tabu. Desopilamos o fígado para lembrar o quanto ele e os outros órgãos estão tinindo, de bem com a vida, até que um dia a morte diga o contrário.
Enquanto houver vida pra viver, que a gente ainda possa curtir muito as boas prosas da vida, fazendo de cada epitáfio um lindo poema.

domingo, 1 de setembro de 2013

Perolices em movimento


Jogo tenso do Galo.
Enquanto a Bella brincava de reconhecer as palavras em um livro colorido, o pai esbravejava diante da TV:
- Ô, Guilherme, pega essa bola!
- Vai, Donizete, vai que é sua!
- Isso, Ronaldinho, faz essa massa feliz!
- Pai, você ainda não percebeu que eles não te escutam? Não adianta ficar gritando!...
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Vôo BH-Brasília, compromisso de aniversário importante.
Depois do tradicional par ou ímpar para ver quem ia ficar na janela, a Bella gasta um tempo apreciando a insólita paisagem.
- Mamãe, quando eu morrer será que eu vou comer nuvem? (...)