domingo, 23 de fevereiro de 2014

Porto seguro


A vida não é lá muito previsível. Por mais que você planeje a rotina, reinvente a sina, siga o script, uma hora o pneu fura. O estômago embrulha. A nuvem cinza cai sobre a sua cabeça e o guarda-chuva ficou em casa. Haja!
Ou não, estava faltando mesmo um senão. De repente o imprevisível surge justamente às três da tarde, na mão do carteiro que bate à sua porta com uma inesperada carta de amor. Carta de amor, em plena era pós-moderna? Só se for. Às vezes é, ué. Vai saber. Vai sentir. Se não tem carta, que reste pelo menos amor.
Ou de repente você ganha na loteria, é convidado para dar a volta ao mundo num balão, se enche de emoção só de pensar no atrevimento inusitado do convite.
Às vezes você é pego de surpresa. Atropelado por uma notícia. Lindamente arremessado pelos olhos daquela moça bonita que já não sai mais da sua cabeça.
Às vezes não acontece nada de novo. Sempre a mesma sexta-feira, de segunda a segunda. Sempre o mesmo arroz com feijão, quer você queira quer não. Vai uma pimentinha aí? Ervas de Provence, répondez s'il vous plaît.
De um jeito ou de outro, seja na turbulência ou em águas mansas, nada melhor do que um porto seguro pra aquietar o coração. Um "como foi o seu dia?" no final dia. Casa de vó. Abraço apertado. Copo d'água. Ombro amigo. Almofada pra chorar baixinho. Montanha pra gritar alto sem ninguém ouvir. Vir... vir... vir...
É quando a família faz todo o sentido. Quando a cumplicidade faz abrigo. Quando quem está ao seu lado está de verdade, por inteiro, bem do lado de dentro.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Assim caminha a desumanidade

Um jogador entra em campo e a torcida do time adversário se agita na arquibancada de forma cruel, desrespeitosa, absolutamente desumana. Impregnados de preconceito racial, homens emitem grunhidos imitando macacos. Perdem a razão, o respeito, a ética e a emoção, literalmente se desumanizando à frente das câmeras. Catarse, força coletiva, crime, animalização. Seja lá o que for, estes chamados seres humanos, teoricamente pensantes, mostram-se lamentavelmente ocos de raciocínio e coração. Em pleno século 21, não dá para acreditar.
Mas ainda não perco a esperança. Resgato da infância a linda música de Paul McCartney e Stevie Wonder que aprendi a cantar na escola: "Ebony and Ivory live together in perfect harmony side by side on my piano keyboard, oh lord, why don't we?" A lembrança é quase fundo musical para o depoimento de Tinga, o jogador-alvo do triste episódio: "Trocaria todos os meus títulos pela vitória contra o preconceito."
Abro o facebook e vejo pessoas formando sua opinião. A unanimidade nunca foi tão sensível e inteligente. Atleticanos verbalizam com indignação seu apoio ao meio-campista do Cruzeiro, unindo-se a ele com solidariedade e respeito. Duas bandeiras tão contrárias flamulam juntas em prol de algo sagrado chamado dignidade.
Escuto meu marido - "Galo até morrer" - comentar sobre as cores da camisa do time do coração:
- É preto e branca, Rê, porque junta as duas raças sem distinção, num grande grito de gol.
Corre esperança nas minhas veias.
Penso no nome do torneio que foi palco deste grande dissabor: Copa Libertadores.
LIBERTA-DORES. Assim seja.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Pausas


Se eu morrer de amor?
Morri.
Flores, violino, último suspiro.
Nasci.
Dor de contração, vôo livre, vou.
Viena, Toscana, Tel Aviv.
Parada cardíaca, abalo de emoção,
nudez enluarada, embalo de dormir.
Concha, estrela,
morrer do sol,
Deus de longe vi.
Poesia, escritura,
lindura de palavra inventada
pra dizer numa sentada
o que senti.
Porvir. Por mim. Tin-tin.
Se eu nascer de amor?
Vivi.