domingo, 8 de setembro de 2013

Prosa ruim


Coisa esquisita essa história de morrer. Como se não bastasse o susto, o luto, o vazio, a indescritível dor da perda, ainda há os estranhos e doídos pormenores. (Ou seriam “pormaiores”?)
De uns tempos pra cá, resolvi olhar para todos eles de frente.
Haja coragem. Haja desembaraço para tocar em um assunto tão intocável. Prosa ruim, não havia título mais apropriado.
Todo mundo vai morrer um dia, eu sei, mas é como se o tema não nos pertencesse. Planejamos viagens, casa na praia, festas de aniversário, buquê de casamento. Reforma do apartamento, mudança de profissão, carro novo na garagem. Sim, sabemos viver. Nossa listinha mental inclui vasos de flor, vinhos na adega, orquestras sinfônicas, enxoval do bebê. Ligamos a TV e o break comercial nos move (ou paralisa) com perfumes, bonecas, chinelos, panelas, colchões, lugares para se descansar em paz. E antes que a sua paz vá embora com bucólicas imagens de gramados verdejantes e slogans idílicos, você muda rapidamente de canal. Da morte à vida em um segundo. Muito mais fácil tomar uma cerveja gelada, suspirar por aquele vestido vermelho, ir com a família pra Disney.
Pois ultimamente ando exercitando essa coisa difícil que é pensar na morte. (No lado prático da morte.) Vão-se os pais dos amigos, os velórios nos atravessam a rotina com seus rituais, fica a constatação dura de que um dia é você que vai passar por isso.
Penso no meu pai e na minha mãe, embasamento mais lindo da minha existência, e sofro por antecipação. Se eu pudesse, eles viveriam duzentos anos. Não posso. Choro.
Assisto à propaganda bucólica e me vejo alvo de seu apelo. Pelo amor de Deus, quando eles se forem quero apenas chorar. Muito. Chorar, rezar, pedir, lembrar, homenagear, fazer-me encanto no meu sagrado canto de despedida. Não quero saber de providenciar nada: flores, jazigo, velório. Não terei cabeça, nem quero ter. Apenas coração pulsando, cabendo tudo o que é dor, memória, saudade, colo, uma existência inteira que se foi apesar de nunca ir.
E foi dessa dolorosa antecipação que chamei meus pais para uma conversa. “Prosa ruim”, fui logo avisando. “Prosa necessária, saudável, minha filha. Faz parte da vida pensar na morte”, respondeu com serenidade minha mãe.
E foi assim que tomamos coragem para ligar para os cemitérios, fazer tomada de preços, esclarecer dúvidas sobre o concreto e inevitável morrer. De uma maneira muito racional, recusamos a violência que é ser pego de surpresa numa hora dessas.
Tenho um cunhado que mal recebeu a notícia de que o coração da mãe parou de bater, foi “gentilmente acolhido” por um agente funerário ainda no corredor do hospital, cobrando preços exorbitantes pela despedida. É dessa triste cena permeada de “marketing emocional” que não quero jamais ser protagonista.
Tenho um amigo, por outro lado, que sempre que vai almoçar na casa dos pais é levado até um canto da sala: “Meu filho, se acontecer alguma coisa tá tudo aqui, nessa gaveta: papelada em dia, comprovantes, o telefone para tomar as providências. Tudo certo.”
Quando inaugurei a “prosa ruim” meu pai não rendeu muito a conversa. “O que você resolver está bom, minha filha. Pode ir olhando e me repasse as informações.” Minha mãe, prática feito ela só, foi logo dando força pro assunto: “Que bom podermos conversar sobre isso, florzinha. Muito saudável a gente cuidar da morte enquanto vive. E, enquanto vive, fazer isso da melhor maneira possível, desfrutando dos momentos de felicidade, aproveitando tudo o que a vida tem a nos oferecer.”
E lá foi ela resolver o assunto, querendo a área do cemitério mais bonita, bem perto das suas raízes. Na sua caderneta de anotações, uma página bem pitoresca vinha com a listinha:
• Presente casamento Luiz.
• Roteiro Portugal.
• Meia anti-derrapante.
• Cemitério.
Outro dia me deu a notícia toda feliz, bem-resolvida: “Filha, comprei meu lote na Pampulha! Quando chegar a hora, o telefone vai estar aqui ó, nesse ímã de geladeira.“
E o que era “prosa ruim” virou crise de riso, abraço gostoso, listinha quitada no nosso jeito bem-humorado de resolver as coisas práticas, imensamente delicadas, sem fazer disso tabu. Desopilamos o fígado para lembrar o quanto ele e os outros órgãos estão tinindo, de bem com a vida, até que um dia a morte diga o contrário.
Enquanto houver vida pra viver, que a gente ainda possa curtir muito as boas prosas da vida, fazendo de cada epitáfio um lindo poema.

4 comentários:

  1. Oi, Renata. Vim até seu blog pelo anúncio do post, no Facebook, através da Heloísa Sérvulo.
    Gostei do post, embora o assunto ainda seja tabu para minha família.
    Anteontem, para ser bem precisa, estava nos afazeres domésticos e pensei nisso...O quanto evitamos falar no assunto. Tenho 3 filhos, já fora de casa, casados, com filhos. O rapaz, sempre fala sobre isso, inclusive no quanto se perde dinheiro,quando temos algum bem a ser partilhado. Melhor que se passe tudo em vida, com usufruto para o dono. A mim ainda me parece um assunto muito estranho, mas a cada dia vejo o quanto é necessário.
    Prazer em conhecê-la.

    (Só consegui gravar o comentário agora, que é a terceira tentativa. Pretendo voltar, mas esse tipo de verificação de palavras desanima muito, viu? rs :)

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  2. Conheci hj seu blog através da Helô, e foquei encantada! Estarei por aqui sempre,

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  3. Ei, Lúcia, seja muito bem-vinda!
    O assunto é mesmo árido, mas faz a gente florescer com ele, de um jeito ou de outro...
    Me desculpe o pequeno transtorno na publicação do comentário, a tecnologia às vezes dificulta quando tem é que facilitar as coisas...
    Da próxima vez, tente publicar como "Anônimo" e coloque seu nome ao final do comentário. Acho que por este caminho é mais fácil!
    Obrigada pela visita, e volte sempre!
    Abraço!

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  4. Coisa boa, Sonica, fico feliz que faça parte do blog.
    Seja bem-vinda, será um prazer vê-la por aqui!
    Abraço!

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